Garcia, Carla Cristina. 1ª ed. Limiar, 2007
149 páginas
Um belo livro sobre o feminino. Carla nos fala dos espaços e da criatividade. Sempre foi dito pela cultura patriarcal que a cozinha é um espaço de confinamento da mulher e o que a autora nos mostra é que pelo contrário, é um espaço de criatividade e libertação.
A escrita também é uma forma de liberdade e normalmente também se produz na casa, mas é capaz de nos levar muito longe.
A arte e a criatividade é uma forma de libertação e de possibilidade de um conhecimento que vai muito além do que podemos aprender na rua, no exterior, mas o mais importante é a união de ambos os lados. Garcia nos chama de volta ao corpo, não no sentido do culto da beleza do corpo, mas como a nossa morada, e onde sentimos, temos percepções do mundo exterior e interior, o físico e o espiritual se unem no corpo.
A Hambre del alma, a fome da alma, é algo que muitas mulheres sentem, e penso que os homens também, pois costumo ver o feminino como sendo algo que é do humano, assim como o masculino, e não separando isto, rejeitando desta forma a dicotomia cartesiana, a mente e o corpo, ou qualquer outra dupla, pois acredito no múltiplo. Somos muitos em um só.
Dentro da cultura patriarcal a mulher foi confinada ao lar e o homem ao mundo. Ele era o intelectual, o que escrevia, que criava, o ativo, e a mulher o passivo. O que Carla nos mostra neste belíssimo livro é que as coisas não foram exatamente assim, e as mulheres sempre encontraram formas de criar também, mas usaram outra linguagem.
Ela nos fala das receitas e de comida. A comida que nos alimenta, tanto o físico como a alma. A sociedade dividiu a gastronomia internacional e seus chefs de um lado e considerou a culinária caseira como sendo nutrição, dia a dia, não um arte. Mas será que é assim?
Na introdução há uma abordagem muito interessante sobre a anorexia que viria substituir a histeria do século passado, ou seja, um protesto das mulheres contra sua situação cultural. "A anoréxica sente não ter domínio sobre o próprio corpo e almeja se tornar ditadora ou tirana desse reino só seu." O corpo da mulher é usado como uma forma de poder, de controle, o que acaba levando a compulsões como dietas, exercícios físicos até seus quadros mais graves como anorexia e bulimia. Outra faceta é a tentativa de manter seu corpo puro almejando a ascese espiritual, esquecendo que é justamente no corpo que as sensações se produzem, o amor, o prazer, aliás, este justamente é o grande vilão.
Adélia Prado é citada no livro: "Se me dessem licença de comer eu me curava, virava gente grande."
A mulher tem fome, é esfaimada. Garcia vai nos falar então de como escritoras saciaram esta fome da alma através da escrita, mas também da culinária, e da arte. Nos fala de Virginia Woolf, Laura Esquivel e Nélida Piñon. A narrativa é uma cura, e os cadernos de receitas muitas vezes trazem diários embutidos neles, observações e frases, além de toda arte, por que os grandes chefs são científicos, medem seus ingredientes, mas a mulher os coloca sentindo o sabor na boca, e ela sabe quando está pronto. A cozinha é um local de criatividade, de narração, as receitas contam histórias, a comida sociabiliza, acolhe, é amor, é nutrição para a alma. A comida une o público e o privado.
Infelizmente a modernidade afastou a mulher da cozinha,além de modismos, dietas que visam falsamente a purificar o corpo ou a alma, o que realmente importa é comer sem culpa e com isto alimentar a alma.
Há vários filmes citados no livro como Tomates Verdes Fritos, Como água para chocolate, A festa de Babette e também livros, todos atendendo a esta fome.
O livro trata realmente de como fazer comida para a psique, de como alimentar esta alma esfomeada. Um belo livro.
Carla Cristina Garcia é mestre e doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP.
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