Kertész, Imre. Companhia das Letras, 2005
Tradução: Paulo Schiller
106 páginas
Um livro pequeno mas que é grande, Liquidação - seria possível mesmo liquidar algo como o holocausto? e tudo que ele deixa de marcas, traços e herança? Existe a superação? ou somente é possível a transformação?
O ponto central do livro é que o homem tem o mal em si e que sem a civilização e a cultura ele mostra do que é capaz. " O homem do tempo das catástrofes não tem destino, não tem qualidades, não tem caráter. (...) Para ele, já não existe retorno a um ponto de equilíbrio do Eu, a uma certeza sólida e incontestável do Eu: portanto, perde-se no sentido mais verdadeiro da palavra. Esse ser sem o Eu é a catástrofe, o verdadeiro mal. "
B. nasceu em Auschwitz e sobreviveu, o que já é algo quase impossível. Judit não conheceu o campo de concentração, nasceu depois, mas traz em si a herança psíquica da família que passou por lá, seu pai, calado, distante. O livro fala do pós-guerra, de quem sobreviveu e de quem nasceu depois e das possibilidades de viver com esta herança. A questão é que vivem numa outra ditadura neste momento, em Budapeste, e em uma entrevista à Folha de São Paulo Kertész dirá que "numa ditadura totalitária só se sobrevive quando se segue a lógica do absurdo." Após a Segunda Guerra muitos países ficaram atrás da Cortina de Ferro em regimes ditatoriais dando continuidade ao caos e violência.
B. que traz em sua coxa a marca do campo uma vez que bebês eram tatuados na coxa porque o ante-braço era curto demais para o número opõe resistência a se livrar disto tudo, é como um gozar na dor, que lhe dá uma certa satisfação. Judit tenta ultrapassar esta resistência e transformar sua vida.
O livro é sobre uma peça que B. deixa após seus suicídio que é lido pelo editor Amargo que também é o protagonista da peça, buscando compreender porque ele teria se suicidado. Quais seriam as razões morais e filosóficas deste ato? Seria o momento em que B. se cansa de buscar outras prisões quando acaba a resistência e se abrem outros mundos diante dele. Ele não pode, precisa viver dentro de Auschwitz que está entranhado nele, como quando os médicos provam os venenos para conhecerem seus efeitos. Somente se vencesse isto, se desvendasse o enigma Auschwitz ele poderia se libertar.
Judit por outro lado perceberá que nada foi por acaso, que se casou com B. para viver Auschwitz e tentar compreender. Um dia ela se dá conta que desistiu de resistir, ou seja, que se deu por satisfeita. Ela abre mão do gozo na dor. E o instinto de viver desperta novamente nela.
A diferença é que B. passou pelo campo de concentração e ela não. Ela não tem imagens e seu corpo não registrou isto, como a marca em B. em sua coxa. Visita o local e não consegue compreender, nestas alturas o campo já foi transformado num local "turístico" de visitações onde os batedores de carteira se aproveitam da emoção das pessoas para roubar-lhes a carteira. Onde é impossível fazer uma visita em silêncio e se está ao lado de pessoas que vieram de outros locais e não tem ideia do que se passou ali. Ela não consegue registrar Auschwitz e não compreende mais B.
Para os que viveram isto, como o autor do livro, não é possível deixar de resistir e esquecer o que se passou. Tenta-se viver , é um sobrevivente.
A leitura é difícil, não se sabe quando é a peça, quando é Amargo o protagonista do livro, são pedaços, cacos, e aos poucos me senti sendo sufocada pela leitura, mas é justamente isto o que é brilhante na escrita de Kertész, ele nos prende com arrame farpado.
Imre Kertész nasceu em 1929 em Budapeste - Hungria.
Foi deportado em 1944 para Auschwitz e Buchenwald sendo libertado
em 1945 pelas tropas norte-americanas. Foi o único sobrevivente de
sua família.
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