Direção: Marcos Prado - 2004
Duração: 116 min
A primeira coisa que me chamou a atenção foi a inteligência e o vocabulário de Estamira. Não conhecia sua história, aos poucos fico sabendo que antes ela tinha outra vida, foi casada com um italiano, teve filhos, mas devido a traição do marido que sempre tinha outras mulheres ela o deixou. Após isto foi estuprada duas vezes, e foi após o segundo estupro que se deflagrou o quadro de esquizofrenia, quando ela passa a desacreditar em sua vida de antes e em Deus.
Mas suas frases e apontamentos são extremamente lúcidos desde que se tenha escuta para eles. O trocadilho, uma inversão, é lógico. Sua consciência ambiental supera em muito as pessoas ditas normais. Que ela tenha raiva de Deus, diante de sua realidade e também do real que se apresenta, principalmente num estupro, e não foi só isto, ela foi abusada pelo avô, e sua mãe também sofreu incesto e depois deixada num prostíbulo com 12 anos por este avô. Ela não era perturbada, era muito religiosa, achava que as dificuldades eram uma provação, até o momento que não deu mais conta do real e ao olhar um coqueiro disse que isto era o real e o poder. Começa o processo se sentindo perseguida pelo FBI.
Seus delírios, visões, o que ela ouve é a maneira que seu psiquismo encontrou para lidar com o real. O estupro é o real, não há palavras para o dizer. Ela não teve ajuda neste momento, não pode usar de uma forma alternativa se apegando a um Deus, por exemplo. Mas Estamira se relaciona com os outros, é falante, ela chora, ama seus filhos, sofre pelas traições que sofreu e principalmente chora porque colocou sua mãe no hospício Engenho de Dentro, não se perdoa por isto. Tem saudades de seu pai e fala dele com carinho. Ela diz que é má, ruim, mas não é perversa.
Suas frases me tocam: " isto aqui é um depósito de restos. Às vezes é só restos e vem também descuido. " se referindo ao lixo. Ela diz que tem que conservar, proteger, lavar, limpar e usar mais, o quanto pode. Economizar é maravilhoso, quem economiza tem.
Diz- miséria não, regras sim. Ela aceita a Lei, a regra. Fala que quanto menos se tem mais menosprezam e jogam fora. Que os laços negativos sujam tudo. Que sacrifício é diferente de trabalho, ela defende o trabalho. E a frase que mais me tocou: " tudo que é imaginário existe".
Seu discurso é místico, ela tem revelações que avisa aos inocentes, ela já sabia de tudo antes de nascer. Faz uso de uma linguagem não compreensível aos outros para se comunicar com este outro mundo, mas que para ela faz sentido. É uma mística não religiosa, mas do mundo, do real. Ela mata Deus, assim como Nietzsche o fez.
Seu discurso busca colocar ordem no caos. Ela diz que as vezes sua mente é como água com gás, borbulha. Ela está gritando algo que ninguém consegue ouvir, precisa de alguém que o consiga.
Quando algo do real não é possível e falar ele atua de alguma forma, vai gritar, o corpo vai gritar, os atos vão gritar, é necessário o que a psicanalista Radmila Zygouris chama de transferência cruzada numa análise, quando é o analista que passa a falar, colocar ordem, dar palavras ao que não é possível dizer. Processo lento e doloroso. O analista repete o crime e o nomeia.
Tudo que é diferente e estranho nos assusta e logo é rotulado, é uma louca. Não, Estamira não é louca, ela tem coerência em sua fala, ela é humana, mas tem uma ruptura que precisa ser nomeada. Ela tem noção de quando fala através de suas visões e quando não, o percebe. Isto também lembra as místicas que relatam ou tentam relatar através de metáforas o que vêem ou sentem durante seus êxtases. O doente mental não separa o delírio da realidade. Ela sabe cuidar de si mesma, não depende de ninguém, tem amigos no aterro, construiu um barraco para si, vai sozinha às consultas médicas.
Sua ida para o aterro sanitário de Gramacho localizado em Duque de Caxias na Baixada Fluminense foi uma tentativa talvez de esquecer, ou de poder ser onde não a internariam. Ela ficou lá por mais de 20 anos. O fato de não cuidar muito de si mesma, de pegar conservas no lixo para fazer comida, isto não pode ser considerado loucura, é a vida dos catadores que ali vivem, é a realidade social deles.
Estamira faleceu no dia 28 de Julho de 2011 no Hospital Miguel Couto em consequência de uma septicemia.
Mas suas frases e apontamentos são extremamente lúcidos desde que se tenha escuta para eles. O trocadilho, uma inversão, é lógico. Sua consciência ambiental supera em muito as pessoas ditas normais. Que ela tenha raiva de Deus, diante de sua realidade e também do real que se apresenta, principalmente num estupro, e não foi só isto, ela foi abusada pelo avô, e sua mãe também sofreu incesto e depois deixada num prostíbulo com 12 anos por este avô. Ela não era perturbada, era muito religiosa, achava que as dificuldades eram uma provação, até o momento que não deu mais conta do real e ao olhar um coqueiro disse que isto era o real e o poder. Começa o processo se sentindo perseguida pelo FBI.
Seus delírios, visões, o que ela ouve é a maneira que seu psiquismo encontrou para lidar com o real. O estupro é o real, não há palavras para o dizer. Ela não teve ajuda neste momento, não pode usar de uma forma alternativa se apegando a um Deus, por exemplo. Mas Estamira se relaciona com os outros, é falante, ela chora, ama seus filhos, sofre pelas traições que sofreu e principalmente chora porque colocou sua mãe no hospício Engenho de Dentro, não se perdoa por isto. Tem saudades de seu pai e fala dele com carinho. Ela diz que é má, ruim, mas não é perversa.
Suas frases me tocam: " isto aqui é um depósito de restos. Às vezes é só restos e vem também descuido. " se referindo ao lixo. Ela diz que tem que conservar, proteger, lavar, limpar e usar mais, o quanto pode. Economizar é maravilhoso, quem economiza tem.
Diz- miséria não, regras sim. Ela aceita a Lei, a regra. Fala que quanto menos se tem mais menosprezam e jogam fora. Que os laços negativos sujam tudo. Que sacrifício é diferente de trabalho, ela defende o trabalho. E a frase que mais me tocou: " tudo que é imaginário existe".
Seu discurso é místico, ela tem revelações que avisa aos inocentes, ela já sabia de tudo antes de nascer. Faz uso de uma linguagem não compreensível aos outros para se comunicar com este outro mundo, mas que para ela faz sentido. É uma mística não religiosa, mas do mundo, do real. Ela mata Deus, assim como Nietzsche o fez.
Seu discurso busca colocar ordem no caos. Ela diz que as vezes sua mente é como água com gás, borbulha. Ela está gritando algo que ninguém consegue ouvir, precisa de alguém que o consiga.
Quando algo do real não é possível e falar ele atua de alguma forma, vai gritar, o corpo vai gritar, os atos vão gritar, é necessário o que a psicanalista Radmila Zygouris chama de transferência cruzada numa análise, quando é o analista que passa a falar, colocar ordem, dar palavras ao que não é possível dizer. Processo lento e doloroso. O analista repete o crime e o nomeia.
Tudo que é diferente e estranho nos assusta e logo é rotulado, é uma louca. Não, Estamira não é louca, ela tem coerência em sua fala, ela é humana, mas tem uma ruptura que precisa ser nomeada. Ela tem noção de quando fala através de suas visões e quando não, o percebe. Isto também lembra as místicas que relatam ou tentam relatar através de metáforas o que vêem ou sentem durante seus êxtases. O doente mental não separa o delírio da realidade. Ela sabe cuidar de si mesma, não depende de ninguém, tem amigos no aterro, construiu um barraco para si, vai sozinha às consultas médicas.
Sua ida para o aterro sanitário de Gramacho localizado em Duque de Caxias na Baixada Fluminense foi uma tentativa talvez de esquecer, ou de poder ser onde não a internariam. Ela ficou lá por mais de 20 anos. O fato de não cuidar muito de si mesma, de pegar conservas no lixo para fazer comida, isto não pode ser considerado loucura, é a vida dos catadores que ali vivem, é a realidade social deles.
Estamira faleceu no dia 28 de Julho de 2011 no Hospital Miguel Couto em consequência de uma septicemia.
Marcos Prado nasceu em 1961 no Rio de Janeiro.
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